Quem sou eu

Tinha os pés mal assentes na terra, uma criança espetadora, saída do ventre da progenitora,

Sobrevim, deslizando da escuridão à luz. Comigo, encafuado no sangue, trazia a doença,

A da visão me fazer ver, a da alma me fazer desacreditar,

A da cabeça me fazer compreender, mas, sobretudo, a do coração não me fazer amar

Além, onde o hábito ordena que se use paninhos quentes para se evadir à realidade,

Vi sangue, e o pano quente da sociedade ousou encobrir a revolta da alma

Compreendi, ali, estávamos para viver ou matar, e a honorabilidade

Era somente uma fachada, bem montada, para dar ao coração um pouco de incerta calma

O oceano extenso e acolhedor efigiava o ventre materno, o regresso da luz à escuridão

E a maresia deslizava melancolicamente a meus pés, ora subindo, ora recuando,

Ora tentando abraçar-me, ora tentando puxar-me, evocando meu nome no vento ambíguo

Incipientemente, embarquei no sal como quem emborca peçonha para se afastar da vida

A vastidão oceânica murchou-me a pele, o sal secou-ma, o sol escoriou-ma

Quis purificar a alma, sará-la dos vícios humanos, mas a solidão não me trouxe convalescença

Tornei-me na ilha deserta, habitada somente por lendas de criaturas disformes

Às vezes, ainda passo por terra – entre os meus homólogos, já não me encontro

Para meu fortúnio a morte do corpo é a salvação da alma

E se de peixes me tenho vindo a matar, aos peixes me vou dar

Escrevo a minha sina para me salvar, pois se algum dia reencarnar

Ao encontrar este papiro engarrafado, saberei os caminhos a evitar