E nenhuma pele está impedida de voar
No outro dia, abri a janela do quarto
E o horizonte esvaziou-se-me, abruptamente, pela traqueia abaixo
Esgueirei-me, como um símio de sangue quente, pelo parapeito da janela, debaixo
De mim, estava o universo dos sonhos sem asas, um deserto de sonhos amputados ao parto,
Logo à nascença, quando a vida e o sonho ainda se beijam, sem tímido rubor,
E julgamos que o céu está ao alcance da mão
E a terra, mundana, longe da imaginação
No precipício dos sonhos, senti uma evocação maior que a força animal – um torpor
Despenhou-se-me nos pés, fiquei lívido como um adulto na solidão, nas vascas da morte.
Afrontei o firmamento, fraquejei, pois tive a certeza de só haver um transporte –
Aquele que vem na sombra dos comboios da estação de um só sentido,
E, ofuscando os transeuntes com um clarão fugidio, parte para o desconhecido
O tempo deu-me intimidade com o precipício dos dois mundos
De repente, tornei-me nas vozes díspares, todas idiossincráticas,
Deixei-me abraçar pelas cosmópoles, rastejando em ambições pródigas e selváticas,
Repletas de metafísica, de indivíduos oriundos
Da terra, com horas para comer e dormir, com propósitos nas morais, e até nos trajes.
Concomitantemente, senti a leveza de existir, tornei-me nos ultrajes
Que ousam contemplar o espelho do vácuo, da razão dos nossos alentos.
Os sonhos beijaram-me a tez, e eu tornei-me nos pássaros, os únicos desatentos
Do sonho, pois só a quimera tem a capacidade de viver sem sonhar
E os pássaros são a quimera, são o sonho dando forma à incapacidade de amar
Abri os braços, como quem contempla o horizonte amarantino,
Na proa de um romântico cruzeiro, em que o coração se vê pequenino
E o complexo universo é condensado no prosaísmo de um suspiro, sem ar,
Verguei-me… dei um passo em frente, deixei o oxigénio sufocar –
E nenhuma pele está impedida de voar
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