E fica pouco do pouco que sempre existiu. Ficando as mágoas enterradas na areia, para que seja o mar a vir beijar.
E fica pouco do que nunca existiu
Recalcitrante, avanço, desafiando sinas e marés, deploradas na escuridão do convés,
Já cruzei estas areias, estes mares, e a folha da dor quase me degolou
Mas abalei, abalei para longe, até da vida, onde nem a morte me pudesse encontrar
Expatriei-me de mim mesmo, isolei-me como um anacoreta no leito do deserto
Recalcitrante, insisto, volto a cruzar o espelho do céu, e recalco o deserto que o recebe
Nele, estamos sós, mas é mentira, trouxemos músicas, sorrisos, alegrias, calor, amor, excesso
Nele, trouxemos tristeza, deploração, agonia, gritos, desespero, traição, apunhalamentos,
Carregamos o peso das verdadeiras histórias de Romeu e Julieta, temos a morte e o sangue,
Temos o delírio de saber sobreviver, a alma encardida, e derramamo-la à nossa sepultura, ao nosso ventre,
Não temos de falar para comunicarmos, mas falamos e sorrimos, fingindo nunca termos morrido
Sabemos, estamos mortos, mas andamos para onde o tempo não nos possa ver
E renascemos, e abrimos a flor-de-lótus há muito morta em nós, mas não o dizemos
Estamos mortos numa extensão do areal que nos floriu, estamos mortos em terras vivas
Voltamo-nos para o mar e banhamos a alma definhada, como se lhe aspergíssemos a cura
A morte é a pena capital, mas quem dela se camufla, surripia a vida como uma conquista
Vida deixa de ser uma dádiva parental, passamo-la a ter por direito próprio, ganhamo-la à morte
Partilhamos os escombros encardidos, e que bom é receber força que lá não estava
E que bom é receber calor, sorrisos indiscretos, amor em mãos que não são nossas
Fechamos os olhos, sumimo-nos no pó da areia, deixamos a praia e o mar
E fica pouco do que nunca existiu