A boa pessoa

14-05-2016 00:40

Ela é a boa pessoa

Todos anuem placidamente,

Porque ela não magoa,

Jamais, jamais, porque é filha de boa gente

 

Ela escolhe sempre o melhor partido, o maioritário,

Ela pode ser caseira,

Mas enfarda um pesado sentido comunitário

E vai só as vezes suficientes à cabeleireira

 

Ela não injuria, não se mistura nas multidões

Ela é sensata, não se dá a desnecessárias confusões

Todos o sabem, ela é uma boa pessoa

Não se intromete demasiado na vida alheia

Vive enfadada, mas não se revolta com o meio que a rodeia

E, em público, só na presença do marido se assoa

 

Ela é a dona de casa perfeita

E ela também trabalha,

Porém, sui generis, o tempo livre não aproveita

Ela vive bem, e para isso não precisa de muita tralha

 

Segue as rotinas, olha o mundo, e com ele vê-se de mãos dadas

Segue os hábitos, os bons e velhos costumes, que ninguém questiona

Acredita no céu, e pede clemência para as almas penadas,

E quando dá futebol serve um bife ao marido, como uma boa dona

 

Aliás, ela é especialista em todos os pratos de carne,

Suculentos, polposos, sumptuosos, faustosos pratos de carne, carne, carne!

Vejam lá, faz amigos e família salivar

E até põe os canídeos a uivar.

Na mesa, é o leite, o queijo, o fiambre, o paio, o presunto,

O chouriço, a alheira, uma panóplia de vísceras sorridentes

Ela é a boa pessoa, aquela que nunca perde assunto

Ela é a boa pessoa, aquela que tem sempre boas palavras entre os dentes

 

Mas os gritos, os gritos, os gritos! Ai, os gritos, a agonia!

Escondida debaixo da faca dos pesadelos está a cobardia

A ignomínia sorrateira, dissimulada no coração de um comum hospício,

Levada à boca em parcas garfadas, numa ilusão de armistício,

 Os porcos guincham, ganem sem dignidade,

Os vitelos, sim os vitelos, logo em tenra idade,

Amputados do amor maternal,

Passam pelas brasas,

No que a boa pessoa diz ser um bom petisco, no bom-tom convencional,

E as vacas, perdidas em demência, veem as próprias tetas profanadas

E sonham, sonham com a liberdade, porque o Homem não é o único a querer asas

Usam o boi para servir iguarias infestadas

Masturbam-no, empregam a inseminação artificial,

Repetem a tortura, até se tornar banal

E a boa pessoa trinca vorazmente sonhos doentes,

Sonhos abusados, sonhos cacofónicos, deplorados, ardentemente dolentes,

Aquelas garfadas, pinceladas de indiferença, são tridentes de demónios,

De demónios reais, que pagam o assassinato, enquanto usam o assento,

Aqueles pratos são os pandemónios,

Charcos de sangue, charcos de tormento

E a boa pessoa paga para criar infernos

E a boa pessoa paga para arrancar-lhes as peles

E a boa pessoa, sentada, inútil, dispensável, diz-se dotada de poderes ternos

Porque a boa pessoa não usa roupas ou modos reles

Usa-lhes os gritos, usa-lhes os sonhos, usa-lhes as peles

 

Ela é a suprema criação,

O desígnio da invenção,

E os outros seres não passam de servos,

Apunhalados vivos, em troca de um resquício de opulência,

Porque isto é a nossa sobrevivência,

Ou algo que o valha, o assunto não vale o desgaste de três nervos

Afinal, não é com ela essa longínqua e irreal ocorrência,

E o sangue das criaturas continua a ser derramado nas chamas ardentes

Enquanto, quaisquer outros a quem se lhes paga,

Atiçam o ódio, atiçam a tormenta, sempre indiferentes

Porque o dinheiro vale a inflição de cada chaga

Porque a boa pessoa julga ser a razão

Quando não passa de uma inútil maldição

Tópico: A boa pessoa

Alimentação

Data: 14-05-2016 | De: Cristina

Eis um poema bem diferente dos demais, não na forma de escrita, mas o assunto que te levou a escrever. Sem dúvida a troco de dinheiro os animais são maltratados e tratados como coisas, tal como os seres humanos também. Um poema que faz refletir acerca de muita coisa, mas que inevitavelmente tenho de concordar: maldição! As pessoas podiam ser uma benção em vez de maldição, não somente para os animais mas para com todo o meio envolvente. E não se importam...
Bem, nem todos são assim... tu importas-te!

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