Vidro

25-02-2016 01:42

Uma fresta nos estores abre as mãos,

Deixa o pesado maço de cigarros na mesinha-de-cabeceira

O coração está dolente, arrasta-se pelos chãos,

Evidentemente, não havia outra maneira.

Do gélido coração abro a porta,

Acendo o isqueiro e deixo-o carbonizar, bem lá dentro,

Como uma lamparina, substituindo a aorta,

Simplesmente, carbonizando, mas sem encontrar o centro.

 

Desarmo as frestas do estore, e vejo, vejo o vidro,

O limiar incolor que separa a inércia da rebelião.

Deparo-me com o sóbrio vidro.

E vida insurge-se contra este novo ser que reclama por significante cor.

E os polos antagónicos ameaçam guerra sem compaixão,

E eu ouso, atraído sabe-se lá porquê, quiçá com pensamento pousado numa simples flor,

Abro-o, deixo os polos bélicos beijarem-se e a vida nasce, como que por magia

Não obstante, nesse preciso momento, arrependo-me da ousadia.

A luz ferve, faz falsas felicidades, falsas formusuras, faz fossas e fealdades. Falsos foliões!

Mas, principalmente, faz monstros hediondos, camuflando-se como camaleões,

 

Se lhes víssemos as almas,

Decrépitas, caquéticas, esquálidas, ossudas, pardacentas, poluídas pelo tabaco da vida!

Porque as aparências, cuidadas, assemelham-se, como as industriais bonecas chinesas.

Porque, de repente, também nós nos olhamos, procurando nossas palmas,

Procuramos encaixá-las noutra metade gémea, como se houvesse saída,

Como se não estivéssemos sós, nem fôssemos nós as presas.

E em desespero procuramos ver em nós alma,

Mas não, o desejo de ser nada, de não ser autêntico, agita a calma,

Porque, aqui, só se respira no tabaco

Porque, aqui, todos bebem sangue sem olhar a quem,

Porque, aqui, todos são vampiros, canibais, assassinos, cem em cem.

Porque, aqui, o sonho é sermos o pico do mundo, carregando ouro num saco

 

E o nosso fumo entranha-se em sonhos alheios,

E os nossos vidros, esfumados, e por isso escancarados,

Não passam de falsos meios

Para almejar a felicidade, ignorando-nos a nós mesmos, os pobres sem passo, os verdadeiros encalhados.

 

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