Vidro
Uma fresta nos estores abre as mãos,
Deixa o pesado maço de cigarros na mesinha-de-cabeceira
O coração está dolente, arrasta-se pelos chãos,
Evidentemente, não havia outra maneira.
Do gélido coração abro a porta,
Acendo o isqueiro e deixo-o carbonizar, bem lá dentro,
Como uma lamparina, substituindo a aorta,
Simplesmente, carbonizando, mas sem encontrar o centro.
Desarmo as frestas do estore, e vejo, vejo o vidro,
O limiar incolor que separa a inércia da rebelião.
Deparo-me com o sóbrio vidro.
E vida insurge-se contra este novo ser que reclama por significante cor.
E os polos antagónicos ameaçam guerra sem compaixão,
E eu ouso, atraído sabe-se lá porquê, quiçá com pensamento pousado numa simples flor,
Abro-o, deixo os polos bélicos beijarem-se e a vida nasce, como que por magia
Não obstante, nesse preciso momento, arrependo-me da ousadia.
A luz ferve, faz falsas felicidades, falsas formusuras, faz fossas e fealdades. Falsos foliões!
Mas, principalmente, faz monstros hediondos, camuflando-se como camaleões,
Se lhes víssemos as almas,
Decrépitas, caquéticas, esquálidas, ossudas, pardacentas, poluídas pelo tabaco da vida!
Porque as aparências, cuidadas, assemelham-se, como as industriais bonecas chinesas.
Porque, de repente, também nós nos olhamos, procurando nossas palmas,
Procuramos encaixá-las noutra metade gémea, como se houvesse saída,
Como se não estivéssemos sós, nem fôssemos nós as presas.
E em desespero procuramos ver em nós alma,
Mas não, o desejo de ser nada, de não ser autêntico, agita a calma,
Porque, aqui, só se respira no tabaco
Porque, aqui, todos bebem sangue sem olhar a quem,
Porque, aqui, todos são vampiros, canibais, assassinos, cem em cem.
Porque, aqui, o sonho é sermos o pico do mundo, carregando ouro num saco
E o nosso fumo entranha-se em sonhos alheios,
E os nossos vidros, esfumados, e por isso escancarados,
Não passam de falsos meios
Para almejar a felicidade, ignorando-nos a nós mesmos, os pobres sem passo, os verdadeiros encalhados.
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